Mais uma excelente dica de leitura da nossa colega Débora Franke.
A era da palmatória química – responsabilidade social e medicalização da infância
A epidemia de diagnósticos de “transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade” (TDAH) que tem assolado a infância está
atrelada a um vertiginoso aumento da prescrição de metilfenidato – droga
tarja preta – para crianças.
Segundo estudo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), o consumo de metilfenidato (comercializado no Brasil com os
nomes Ritalina e Concerta) aumentou 75% entre crianças e adolescentes na
faixa dos 6 aos 16 anos entre os anos de 2009 e 2011.
Curioso é observar que a venda dessa droga aumenta no
segundo semestre escolar e cai durante o período das férias escolares.
Como aponta Eliane Brum no artigo “O doping das crianças”, publicado na
revista Época sobre o estudo, “isso significa que há uma relação direta
entre a escola e o uso de uma droga tarja preta”, o que faz essa
substância ser conhecida como “a droga da obediência”.
Parece que estamos vivendo a era da palmatória química, em
que a utilização de psicofármacos para a infância em grande escala passa
a ser uma prática socialmente corrente.
Não é dos dias de hoje que a criança é ativa e inquieta,
que seu corpo se agita diante do que ainda não consegue representar pela
palavra, ou que a sua curiosidade a leva a distrair-se, derivando sua
atenção em diferentes rumos.
Henry Wallon, importante neurologista e psiquiatra
infantil, já apontava no ano de 1925 que a criança é essencialmente
turbulenta, a hiperatividade está atrelada ao seu processo de
constituição e pode agravar-se quando há alguma angústia diante de uma
situação de vida à qual a criança não consegue fazer frente. Em recente
trabalho de doutorado sobre o tema da colega Cristine Lacet, de cuja
banca tive o prazer de participar, ela nos recorda o que disse esse
estudioso: “Quem sou eu e quem eu fui para me permitir julgar o excesso
vital de uma criança? Que contas devo eu a uma sabedoria culpada que me
fez tornar adulto? Damos crédito para que a criança use e abuse de sua
vitalidade. Quem somos nós para normalizar assim nossas nostalgias
infantis?”
É preciso considerar que nem toda agitação ou desatenção é
doença, como afirmaram os colegas Ilana Katz e Paulo Shiller em coluna
na seção Tendências e Debates da Folha de S.Paulo, em 9/7/2014.
O fato é que, desde a década de 50, a utilização de
psicofármacos para tratar de doenças mentais tem sido cada vez mais
frequente entre os adultos. A partir da década de 80, essa prática
começou a estender-se para a infância. Sem dúvida há situações extremas,
tais como delírios, alucinações, privação de sono, agressividade
extrema, automutilações, em que uma medicação torna-se necessária para
criar as condições mínimas de vida e de tratamento. Mas há 25 anos
atrás, quando comecei a clinicar, era praticamente impensável que os
pais solicitassem psicofármacos para os filhos. Era evidente para eles a
necessidade de centrar o tratamento nas aquisições que a criança, em
pleno processo de formação, poderia fazer. No entanto, hoje em dia, é
corrente que os pais interroguem se “umas gotinhas ou comprimidinhos
para acalmar e ajudar a concentrar não viriam bem”.
Muitos pacientes recorrem à rede pública em busca de um
psicofármaco, como se, de modo isolado, residisse nele a resolução do
problema. Diante disso, psiquiatras extremamente preocupados com a
situação veem-se na situação de esclarecer à população sobre a
complexidade do quadro.
Ocorre que esses psicofármacos gozam, junto à população, da
credibilidade de certos procedimentos altamente eficazes – tais como
vacinas ou antibióticos – que de fato eliminam ou evitam uma doença. No
entanto, os mecanismos de licenças e aprovação de psicofármacos nem
sempre implicam procedimentos tão rigorosos e criteriosos como os
adotados em outros campos da medicina. Ao tratar-se de patologias
mentais é preciso considerar que as relações causa-efeito das “doenças”
não são tão lineares, pois estão atrelados a vários fatores
(multifatorialidade), o que torna complexo o seu tratamento, o seu
diagnóstico e a especificidade de seus sintomas, dificilmente
“consertados” por uma única medicação.
Como afirma o psicanalista Alfredo Jerusalinsky, é
impossível falar desse assunto sem tocar a própria história das
classificações psiquiátricas, que “ao longo dos últimos 30 anos têm
transformado problemas em transtornos”. Ele explica: “Um problema é algo
para ser decifrado, interpretado, resolvido. Um transtorno é algo a ser
eliminado, suprimido”.
É preciso notar que, seguindo a lista de critérios adotados
para os diagnósticos de transtornos da atualidade, é praticamente
impossível passar incólume por eles. Qualquer dúvida, vide na lista que a
Associación de CHADD mostra em sua página de internet quais são as
perguntas e indicadores mais frequentes para suspeitar desse
diagnóstico: “Meu filho tem TDAH? Qualquer pai pode se fazer esta
pergunta. A resposta a esta pergunta é: todas as crianças podem,
eventualmente, ter uma atividade excessiva. Sua atenção também pode,
eventualmente, ser breve. No entanto, se seu filho é mais ativo que
outros de sua idade, então tem TDAH”. Este não é o único indicador, há
outros: “Que a criança tenha esquecimentos frequentes, perca seus
pertences, seja desorganizada, seja inconstante em seus pensamentos, que
seu professor afirme sua dificuldade em permanecer sentado, que não
consiga esperar que suas perguntas sejam respondidas, que preste mais
atenção ao redor que a si mesmo, que manifeste agressividade, que
apresente dificuldades acadêmicas na aprendizagem da língua e da
matemática”. Nessa página consta que, se a criança apresenta estas
características, seus pais estão autorizados a pensar que seu filho tem
TDAH e devem levá-lo para uma avaliação. Convenhamos, que criança
saudável passaria incólume por esses critérios?
Se a turbulência da criança traz problemas para os adultos
que dela cuidam, se sua atividade é híper, excessiva, para os demais,
fazer disso um transtorno, pressupondo por trás dela uma desordem
orgânica a ser eliminada, implica outra lógica.
Os defensores do THDA como um transtorno com entidade
clínica específica e de seu tratamento com drogas estimulantes asseguram
que ele está associado a “alterações no cérebro”. Mas tanto a
Conferência de Desenvolvimento de Consenso dos Institutos Nacionais de
Saúde (NHI, EUA, 1998) quanto a Academia Americana de Pediatria (2000)
confirmam não haver bases biológicas conhecidas para o TDAH.
Se não está comprovado que algo falte ou sobre no cérebro
de uma criança com hiperatividade, o fato é que, a partir da introdução
de um psicoestimulante como o metilfenidato, o cérebro passará a
funcionar de forma diferente.
A utilização dessa droga não é inócua, e menos ainda para
uma criança em formação. Sua longa e preocupante lista de efeitos
colaterais vem despertando o alerta dos especialistas. Sabe-se que há
efeitos no apetite, efeitos cardiológicos, efeitos relativos ao aumento
de comportamentos obsessivos-compulsivos e à diminuição das atividades
de curiosidade, de exploração, de brincar e de sociabilização das
crianças. A neurocientista Diana Alicia Jerusalinsky no artigo “Trata-se
de caçar o caçador?”, publicado no Livro Negro da Psicopatologia
Contemporânea (2011, editora Via Lettera), questiona a causalidade e
tratamento dessa classificação psicopatológica, recordando que quase
sempre o tratamento começa quando se desenvolvem conflitos com os
adultos na escola ou em casa. Logo, sob efeito da medicação, as crianças
passam a sofrer de outros transtornos que até então não tinham,
passando a consumir novos psicofármacos para combater depressões,
alucinações ou desordens de bipolaridade. Diante disso, a autora cita
Peter Breggin (diretor do Center for the Study of Psychiatry and
Psychology – Bethesda, EUA, 2002) em sua fala diante do Congresso dos
EUA: “Qualquer anormalidade cerebral nessas crianças é quase que
certamente causada por uma exposição prévia à medicação psiquiátrica.
(…) Enquanto obtemos um alívio transitório da culpa imaginando que a
falta está no cérebro das crianças, acabamos subestimando nossa
capacidade para realizar as intervenções adultas que realmente são
requeridas”.
É nesse contexto que, a SMS-SP (Secretaria Municipal de
Saúde de São Paulo), por meio da Portaria nº 986/2014, regulamentou, em
12 de junho de 2014, as condições de prescrição e distribuição de
metilfenidato na rede pública. Uma medida mais do que acertada: um ato
de responsabilidade social acerca do modo em que abordaremos, em nossos
tempos, as manifestações de saúde e de sofrimento das crianças.
Nota da Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental) em
apoio à decisão da prefeitura afirma que, segundo recentes dados
oficiais dos Estados Unidos, aproximadamente 1/5 dos adolescentes no
ensino médio receberam o diagnóstico médico de TDAH, e 11% das crianças
no ensino fundamental receberam esse mesmo diagnóstico. Dessas crianças e
adolescentes diagnosticadas com TDAH, 2/3 receberam prescrições de
estimulantes como Ritalina. Esse mesmo fenômeno ocorre em diversas
outras sociedades. Na Inglaterra, o número de drogas prescritas para o
TDAH (metilfenidato, incluindo a Ritalina) disparou mais de 50% em seis
anos.
O que acontece dentro das escolas que faz com que muitos
professores estejam, eles mesmos, medicalizados para tentar sustentar a
difícil função de transmitir a realização e também frustração que faz
parte do processo de apreender? O que acontece com os pais que, tomados
pelo trabalho, delegam à escola certas funções estruturantes no sentido
de autorizar mas também de cercear o gozo das crianças? O que acontece
com uma infância confinada a casas de poucos metros quadrados e TVs de
várias polegadas, retiradas de um espaço público degradado e violento?
Se apenas médicos podem receitar medicação, como a AMB
(Associação Médica Brasileira) coloca em nota de contestação à decisão
da SMS da Prefeitura de São Paulo, publicada no Estadão, é, no entanto,
central que a avaliação clínica seja feita por equipe interdisciplinar
que considere o sintoma que comparece na criança de modo não isolado,
tal como a prefeitura propõe. É o mínimo que inicialmente podemos fazer
no sentido de perguntar-nos se tantos diagnósticos de hiperatividade são
de fato um problema isolado no cérebro das crianças de nossos tempos ou
se, diante da dificuldade de educar, estamos recorrendo a uma
palmatória química.
Julieta Jerusalinsky
Psicanalista
Psicanalista
07/08/14
Acesso em: http://blogs.estadao.com.br/crianca-em-desenvolvimento/a-era-da-palmatoria-quimica-responsabilidade-social-e-medicalizacao-da-infancia/
Equipe CAPSIA
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