Artigo completo publicado no Jornal El Pais, escrito por Eliane Brum.
“Os manicômios não são passado, são
presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo,
mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no
Brasil, crianças e adolescentes
continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça.”
O autor da
reportagem traz dados obtidos pela Psicóloga Flávia Blikstein que compõe
o seu trabalho de conclusão de Mestrado na Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de São Paulo. “A
investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da
política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei
nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento
em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que
a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos
extra-hospitalares”.
Uma
das histórias contadas na reportagem é a de Raquel (nome fictício):
“Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa
por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas
porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse
destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães
vivas. Pobre demais para dar conta
dela, a avó colocou Raquel num abrigo
aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de
“mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra
Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a
exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou
aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.”
O destino de Raquel?
“Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias. Nas três primeiras vezes, tornou-se
evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel
confinada.(...) Após nova internação, e depois
de mais 413 dias nesta, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela
iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis
vínculos familiares e a impediu de criar novos? (...) No total, Raquel
ficou trancada no Pinel cinco anos. (...) Em 2010, aos 16 anos, ela foi
transferida para outro hospital psiquiátrico.”
E o autor segue:
“Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o
contexto e as circunstâncias, não era o
principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o
primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá
certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.”
Outra história
contada na reportagem é a de José (também nome fictício):
“José
tinha 10 anos quando deu o primeiro
passo para dentro do Pinel, por ordem
judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação
afetiva”. Apresentou “comportamentos
desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua
mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José
recusou-se a ir. Ele não queria se
separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se
jogar diante dos carros, na rua. A “crise
de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.
Quando teve alta,
José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser
internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para
onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com
intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e
risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir
novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele
permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde
fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto. No total, José ficou 1271 dias
trancado no Pinel: três anos e cinco meses”
Em números os dados da pesquisa são impactantes:
“Em pouco mais
da metade dos casos – 55% – o pedido
de internação psiquiátrica foi feito
por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram
internados por ordem judicial. Estes
são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa
mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no
período pesquisado, a Justiça internou
mais cedo, por mais tempo e mais vezes.”
O diagnóstico de
Raquel era Transtorno de Conduta. Um
diagnostico comum também em nosso município
e cujo emprego é muitas vezes banalizado, sendo atribuído de forma
indiscriminada.
“Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico
de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente
– para justificar internações em hospitais psiquiátricos. (...)Flávia constatou
que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos
quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como
motivo de confinamento”
Espantado com as histórias e dados
revelados pela reportagem? Pois saiba que estas histórias tão distantes
estão muito próximas da realidade que vivemos em nosso município. Internações
por via judicial, pedidos de medicalização de agitações, agressividade,
comportamento opositor na adolescência...
Obviamente existem
quadros patológicos importantes com tais sintomatologias, mas é preciso cautela
em seu diagnóstico e tratamento.
Diariamente
recebemos encaminhamentos solicitando avaliações dos comportamentos citados,
sem que pareça haver qualquer reflexão prévia sobre as motivações destes jovens
para a revolta, para as crises, o pedido é por medicamentos que acalmem e
anulem esta voz quando elas falam de realidades sociais chocantes, abandono,
descaso, impotência.
A própria pesquisadora
nos elucida um pouco do que pode ser uma solução
pra o exposto:
“A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde
mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de
internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde
mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de
centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação
de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e
cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos
campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.”
“Crianças e
adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade,
junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve
ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade
única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for
necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a
história inteira. A internação é um momento, não um destino.”
A reportagem é
longa, mas vale a pena sua leitura atenta!
Indicação das colegas Rafaela Pereira e Daniela Gruendling.
Equipe CAPSIA